quinta-feira, 27 de março de 2014

"Júlia gostava de poesia e de discutir metafísica. Era, mas não sabia. Acreditava que a oportunidade de viver em um mundo como o nosso deveria ser justificada. Tentava entender a sociedade moderna, o capitalismo e Karl Marx. Nietzsche era o seu maior ídolo. Gostava de dias ensolarados, mesmo que seu peito carregasse uma nuvem negra. Aturava a realidade andando em uma corda bamba chamada 'arte'.
Perguntava-se como o homem, nesse jogo de opostos, desejava ser tão racional, não saber nada sobre amor e falar sobre sabedoria. Era de uma doçura imensurável, não sabia ferir os outros. Embora fizesse coleções de cicatrizes por ter tocado algumas pessoas. Júlia caía abismos inteiros sem soltar um choro. Todavia, desabava em lágrimas ao encostar em uma pétala. Sua sensibilidade era excessiva, tudo lhe atingia como um furacão. Um conselho: tirem suas mãos de Júlia.
Encarava a dança como uma deusa. Achava linda a rima que formavam os movimentos. Era completamente louca pela ideia de que o amor sem rótulos poderia mudar o curso de uma vida inteira. Defendia o pensamento de que alguém poderia completa-la, sem saber que se bastava. Vivia perdendo-se entre promessas do que aparentava ser uma história de amor. Se esquivava, entretanto. Isso nem ela poderia explicar.
Certo dia, Júlia se apaixonou. Ou pelo menos se apaixonou pela ideia de se apaixonar. Quem via comentava o quanto era linda a melancolia da menina que descobre o amor. Olhava para a lua com olhos de sereia, implorando por um sorriso de volta. Descobriu cedo que o amor não tinha nada de maravilhoso.
Juntou suas mágoas em uma mala e seguiu viagem, tropeçando muitas vezes ainda. Não perdia essa estranha mania de acreditar. Ganhava, aos poucos, malícia para encarar a estrada sozinha. Sem se dar conta do perigo, acabou por encontrar um acompanhante.
Pedro era um sujeito simpático. Trazia em sua bagagem um amontoado de corações partidos e um charme sem medida. Seus olhos verde esmeralda expressavam o ritmo agitado de um mar. Saciavam, porém, o âmbito de Júlia por calmaria. Ele cuspia palavras atraentes e possuía um estranho hábito de transformar noites frias em lares aconchegantes. Era habilidoso como ninguém e acabou por fazer Júlia se convencer de que poderia costurar uma colcha macia a partir de todos os seus retalhos.
Brincava e transformava todos os embolados de medo e insegurança de Júlia em confiança. Transfigurava choro em amor. Conseguia chaves para baús esquecidos. Exploravam, juntos, o mundo, como dois piratas com a promessa do desapego. Júlia nunca fora muito boa em cumprir promessas. Pedro tornava-se cada vez mais essencial.
Pedro partiu.
Partiu seu coração. Fê-la acordar, abandonada, sem ao menos uma carta que justificasse a pressa. A notícia veio para Júlia como um tsunami. Nunca algo doera tanto em seu peito. Devastou a sua alma. Causou rasgos irreparáveis. Fez com que se programasse para não mais se entregar com tanta intensidade. Esperou meses por sinais de fumaça. Seus olhos se acostumaram com o dolorido das olheiras. Chorou oceanos, se martirizou. Não conseguira ser para ele. Matou  o resto de esperança e acelerou, com aquilo que chamava de coração em um altar particular.
Desfez-se de velhas manias, abandonando-as em cada lugar que passava. Conheceu castelos, fez-se rainha. Deslumbrou-se com lutas e notas musicais. Viveu uma inconstância constante por muito, muito tempo.
Um dia o sol decidira nascer diferente.
Júlia cedeu a um desejo carnal, um  mero capricho do coração e acabou misturando todos os sentimentos dentro de si. Significaria isso algo para ela, que lutou tanto pelo desejo da solidão? Assustou-se. Recuou. Balançou-se entre ser um turbilhão ou manter o silêncio.
Guilherme era um garoto vivido. Trazia consigo uma vida inteira de análises, além de promessas de mudanças. Estava profundamente envolvido e disposto a escalar muros e alcançar a sensibilidade de Júlia, que, por sua vez, começava mais uma vez a se entregar, mas seguia no papel de atriz hollywoodiana em sua performance de mocinha.
Havia uma luta inacabável em sua mente. Guilherme coloria o seu coração com a aquarela mais rara e fazia bem a ela. Poderia Júlia pelo menos esforçar-se para corresponder? Não sabia. Seu coração sempre esbravejara forte por Pedro, que não tinha olhos para ninguém além de si mesmo. Seu simples toque, porém, talvez valesse mais do que o mundo por completo de Guilherme. E desse modo continuava Júlia, com um punhal de dúvidas cravado em seu coração e uma sede que não poderia saciar-se: a da liberdade de ser exatamente o que se é. Seu combustível? A esperança de que algo pudesse mover seu coração."
Isadora Egler

Um comentário:

Anônimo disse...

Você é genial, Isa!
Simão de Miranda