"Todas as fórmulas
desenhadas no quadro minuciosamente pelas mãos velhas e encardidas que tremiam
o giz arrastado e gasto causavam-me nojo. Os números, a lógica, a organização
doentia destruíam-me talvez por trazer à luz uma ideia de que tudo haveria de ter
uma solução. Contorcia cada músculo de meu corpo como forma de fuga, tentativa
de fazer com que minha alma que tratava há muito a dor como algo corriqueiro,
não se banhasse em perfeição. Porque sempre gostei dos numerais quebrados, das
raízes negativas e de todo o resto que insiste em não querer existir.
Olhava para meus dedos com as unhas
descascadas de um antigo esmalte cor de vinho barato. As mãos não ficavam
quietas um instante sequer. Os tendões das costas enrijeciam-se pois a cadeira
era demasiadamente desconfortável. Meu olhar encontrava seus lábios latejantes
esboçando um sorriso esquerdo.
Sentia tanto, que parecia que o oxigênio
que entrava em meus alvéolos era devolvido em forma do suspiro mais carregado.
Sua boca abria-se em sintonia com meus olhos e jogava a cabeça para trás como
se fosse um bloco de concreto que, quando carregado por seus braços, mais
parecia uma cesta trançada que abriga as mais lindas petúnias em tempo de
início da primavera.
O alarmar do sino agredia meus ouvidos com
delicadeza (e ora, como se agride com delicadeza? Ah, tenho certeza que já sabe
a resposta...). Havia certo burburo e movimentação preguiçosa dentre as
pessoas, mas dentro de mim tudo permanecia em inércia. Com a mente vazia
(oficina do diabo, diriam as mães), veio à minha mente o cheiro amargo e
impregnante de uísque. A adrenalina foi depositada em uma dose feroz em minhas
veias e lembrei-me de meu pai. E da noite anterior. E de tudo. O caos veio à
tona. O show de aberrações que vinha sendo minha vida nos últimos dois meses.
Tentava convencer-me de que era um vagabundo.
Não. Seria certo regar tal menosprezo pelo homem que me carregara nos braços
desde o momento em que abri meus olhos para esse inferno sem voltas? Mas o que
fizera com a mulher de sua vida... Ora. Raramente o destino acorda de bom humor
e cruza caminhos de maneira tão devota. Tirar-lhe o direito de ter voz em meio
à revolução, à guerra que acontecia em seu coração, seria o pior. Ainda assim,
o fez.
Os observava falarem. Tudo o que entrava
em meus ouvidos, entretanto, era a superficialidade. Incomodava-me tanto.
Estaria eu tentando ser como eles, atribuindo tanto valor a tudo aquilo que
fosse falta de sentimentos? Sentia-me prostituída por futilidade e essa
sensação constante de não-salvação.
Já sozinha, em um estalar de minhas
memórias, recordei-me do sonho daquela noite. Suava frio como se tentasse
arrancá-lo de mim. O funeral de um índio, assistido de perto. Um pobre selvagem
que causara a própria morte por rasgar a carne, arrancar o esterno e colocar no
lugar do coração o de um pássaro. Falecer, ainda assim, com a expressão de quem
dorme ninado pelas rimas de um anjo. Sem preocupações. Sem sofrimento. Apenas
poetizando a dor da partida eterna.
É evidente que haveria de ter uma
explicação esse sonho tão desconexo de tudo o que vinha se passando. A metáfora
esdrúxula de surgira, entre devaneios e forças que me puxavam para algo no
mínimo lógico foi de que o belo índio se apaixonara pela ave. Encantadora,
exibindo seu direito de voar por onde quisesse e pintar o céu com suas penas
acobreadas, fez com que o pobre homem se perdesse em paixão. O desejo de ter
tornou seu próprio coração inválido. Nada mais justo do que a ave pagar a
dívida.
Tantas vezes fazemos isso. Sim, amor.
Contigo o fiz também. Essa raiva toda é só rastro de um antigo âmbito forte de ter
que queimou meu coração. Preciso, agora, do teu para compensar meus excessos...
Tomei-o de seu peito forte que poderia ser abrigo para tantas noites ardendo em
calor. Teríamos um ao outro e, assim, aquilo que bate mais forte seria imortal.
Escolheu, porém, pela solidão das moças. Optou por beijar-lhes as clavículas e
partir com o gosto do momentâneo logo pela manhã. Tive de tomar seu coração. Tivemos
de dar certo, da maneira errada.”
Isadora Egler
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